Filme mais bonito que você vai ver essa semana acaba de chegar à Netflix
“Limbo” parece a mistura de uma notícia de jornal com uma sátira algo cínica sobre a tragédia dos milhões de refugiados...
que deixam sua terra natal por manifesto desacordo com governos autocráticos, perseguição religiosa, a total falta de perspectiva em que degringolam um e outro cenário ou só a vontade desesperada de garantir um prato de sopa ao fim de um dia frio. Em seu segundo filme depois da estreia promissora com “Picadero” (2015), sobre um casal morando de favor na casa dos pais de um dos cônjuges durante uma crise econômica na Espanha, o escocês Ben Sharrock ratifica a vocação para tratar de assuntos espinhosos com um humor nada costumeiro, quase agressivo em sua sanha por desmistificar aspectos íntimos demais da vida de gente comum, especialmente vulnerável a reviravoltas sociais que não têm a menor pretensão de controlar.
O diretor-roteirista leva a sério a máxima latina sobre castigar os costumes com o riso e em certas ocasiões chega a abusar da impudência ao tecer suas considerações nada razoáveis — mas sensatas — acerca do invencível estranhamento de quem é obrigado a esquecer suas origens para salvar a própria pele, equilibrando uma certa insensibilidade proposital com muita ternura, o que resulta em cenas de nuanças diversas de emoção, onde os personagens sempre contam mais que a lógica.
Omar queria ir para Londres, mas acabara no interior da Escócia. Por aí começam 105 minutos de um vaivém de melancolia e graça, com Amir El-Masry dando corpo a um artista de espírito aventureiro, mas pragmático, que sabe exatamente que sonhadores como ele precisam manter-se na rédea curta se quiserem ter a chance de fantasiar com amanhãs menos carrancudos.
El-Masry capta com perspicácia assombrosa a delicadeza de seu personagem, um aspirante a músico que só encontra um resquício breve da plenitude da Síria de sua juventude ao dedilhar seu velho oud que o avô lhe dera, um dos pouquíssimos luxos que se pode dar naquele pedaço de mundo inóspito e que não se furta a demonstrar sua hostilidade. A montagem de Karel Dolak e Lucia Zucchetti prioriza os momentos em que Omar aparece dentro de uma cabine telefônica no meio de uma paisagem cuja bruma quase chega ao outro lado da tela, quando, com alguma dificuldade, consegue ligar para Istambul, onde a família está morando, e fala com a mãe.
Seu único passatempo genuinamente despreocupado é tomar conta de Freddy Junior, o galo que Farhad, seu novo colega de quarto, subtrai de um rancho próximo. Até o desfecho, Vikash Bhai passa a dividir com El-Masry as inúmeras sequências agridoces de “Limbo”, na Netflix, um conto moderno sobre uma gente esquecida que não deixa de existir só porque incomoda. Pelo contrário: quanto mais se aprofunda o abismo de certa segregação, novíssima, mais sentimos que usurpamos nossa própria pele.
Filme: Limbo
Direção: Ben Sharrock
Ano: 2020
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10
REVISTA BULA - POR GIANCARLO GALDINO EM FILMES - 20/03/2024