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Quando a vida entra numa espécie de repetição eterna, e ciclos se iniciam e têm fim sem que consigamos perceber, é hora de mudanças radicais no que temos feito de nossa jornada aqui embaixo. Walter Mitty, o personagem-título da comédia fantástica de Ben Stiller, chega a um ponto em que não sabe o que pode ser a dura realidade e aquilo que só existe mesmo em sua cabeça tomada por devaneios, quiçá emulando os dias de glória de que jamais pudera usufruir.
Walter é o arquétipo da boa loucura — porque, por óbvio, a insânia também dispõe de dois lados —, se perdendo e tornando a se encontrar num carrossel de desejos recalcados, seu tormento e sua salvação. Em “A Vida Secreta de Walter Mitty”, Stiller coloca em marcha elementos do humor que decerto fora obrigado a sufocar em diversos de seus inúmeros trabalhos, uns notáveis, outros nem tanto, quase uma centena e meia de tipos como ator, entre filmes, séries e participações especiais, e aqui, a exemplo do que fizera em outras duas dezenas de vezes, o protagonista-diretor tem a chance de pôr a nu sua versão para figuras como este personagem central, particularmente saboroso nas idiossincrasias de que o público vai se apropriando sem pedir-lhe licença.
Walter gasta quase três mil dólares para pagar a hospedagem da mãe numa casa de repouso, a assinatura num site de encontros românticos que nunca acontecem e o aluguel de uma vaga para guardar um obscuro piano, que manda para o asilo. Seja lá quanto ganhe — e ele vai carecer de toda reserva que puder amealhar em breve — é pouco, mas ele não é bem um homem de grandes luxos.
Levemente inspirada no conto homônimo de James Thurber (1894-1961), publicado em 1939 e adaptado para o cinema pela primeira vez em “O Homem de 8 Vidas” (1947), dirigido por Norman Z. McLeod (1898-1964), a versão de Stiller coloca Walter na pele de um arquivista de negativos na “Life”, revista cuja edição inaugural remonta a 1883, mas que não aguentou a inundação de tecnologia e celeridade dos dispositivos móveis online e deu seu último suspiro no ano 2000.
Enquanto não é colhido pelo maremoto de demissões, ele segue até a estação de trem a caminho de casa, reclama com o atendente sobre um defeito em seu perfil no tal site e salva uma linda mulher e seu cãozinho amputado de uma explosão de dimensões nucleares no prédio de tijolos aparentes a alguns metros dali.
Essa última parte, claro, só acontece no dédalo de pensamentos tresloucados de sua mente brilhante, mas a moça existe mesmo, e está muito mais perto do que ele pensa, embora o roteiro de Steve Conrad não se farte de provocar a audiência quanto à veracidade do que vai ali. Cheryl Melhoff, a mocinha vivida com graça e denodo por Kristen Wiig, vai se aproximando dele, a princípio deveras ressabiada, e talvez este fosse o apogeu da história que construiu sobre uma montanha de fotos em preto e branco, subitamente manchadas de vermelho quando alguém abre a porta do laboratório de revelações sem querer.
A propósito, o suvenir que lhe deixa Sean O’Connell, o fotógrafo hemingwayano de Sean Penn, também pode ser só uma ilusão de ótica — bem como a homenagem que a “Life” faz para ele na capa do último número, no desfecho.
“A Vida Secreta de Walter Mitty” talvez seja um dos filmes mais enigmáticos do cinema, a despeito do título. Sente-se pena, incômodo, horror pela condição do herói, com Stiller numa performance irregular, mas esplêndida no fim das contas, justamente porque qualquer um em sã consciência (ops!) reconhece o Walter Mitty que vive em si.
Um certo abuso de efeitos especiais molesta, até distorcendo o real intuito do que é narrado, mas o elenco — com direito a uma cálida participação de Shirley MacLaine como Edna, a mãe senil do protagonista — impede a catástrofe. Walter Mitty é o retrato de um mundo em constante evolução, embora não se saiba para onde nem para quê. Este filme já nasceu clássico, e os clássicos, todos sabemos, nunca deixam de ser atuais.
Filme: A Vida Secreta de Walter Mitty
Direção: Ben Stiller
Ano: 2013
Gêneros: Aventura/Comédia/Fantasia
Nota: 9/10
REVISTA BULA - POR GIANCARLO GALDINO EM FILMES - 02/02/2024 - 17:19