O melhor suspense que você verá neste fim de semana acaba de estrear na Netflix

No transcurso da vida, repetem-se as situações em que o sentimento amoroso nos aprisiona, nos domina, nos oprime, o que pode vir a ser só um incômodo ou transformar-se numa nódoa moral.
Decidir viver com outra pessoa implica prazeres, os do corpo e os melhores, mas também muitas, muitas dificuldades, algumas intransponíveis a depender da forma como os amantes manejem seus desamores. Lutamos para nos preservar sãos, a uma razoável distância do caos e da infortúnio, numa peleja que o outro pode ajudar-nos a vencer, mas que é só nossa. Há muitas camadas em “O Jogo da Viúva” — um casamento fracassado; uma mulher jovem, bonita e ambiciosa procurando aventuras, prazeres, e realizações; um homem de meia idade carente, cheio de tédio e propenso a alimentar fantasias pueris —, todas apontando para uma tragédia. Enquanto ela não vem, o diretor Carlos Sedes descortina as muitas faces da hipocrisia, misturando as tantas contradições do amor e dos elementos que a compõem à desfaçatez mais perversa, de modo a deixar o espectador a um só tempo confuso e excitado.
Antonio Navarro Cerdán (1981-2017) e María Jesús Moreno Cantó pareciam o casal perfeito. Entretanto, por trás da boa aparência de um e da outra escondiam-se neuroses, desconfiança, medo e uma cólera tácita e irracional que não demoraria a culminar num crime que deixaria toda a Espanha indignada. Pelo que se tem no roteiro de Ramón Campos, David Orea e Gema R. Neira, María Jesús, a Maje, é alguém que padece de uma insatisfação crônica e generalizada, ainda que não esteja disposta a dar uma solução judiciosa a esse desconforto. Ela permanece casada, embora só deseje um teto para chamar de seu, devotando um empenho meio doentio ao trabalho de enfermeira, decerto para esquecer sua vida entre quatro paredes. Arturo, o marido — o único personagem a mudar de nome, por questões legais —, nota o comportamento estranho de Maje, e Sedes é hábil em conduzir o mal-estar entre os dois até uma cena em que o telefone vibra e surge na tela uma mensagem erótica de Daniel, com quem ela está saindo. Ainda na introdução, o diretor lança mão do recurso fácil do flashback, deixando claro que há um assassinato por acontecer; sua grande sacada é a forma como estica a crise de Maje e Arturo, sugerindo algumas possíveis reviravoltas no enredo, que não se materializam. Ainda que apareça pouco, Álex Gadea concentra boa medida da tensão do segundo ato, o que prepara o longa para a briga de gato e rato envolvendo Maje e outras duas figuras centrais.
Na pele de Maje, Ivana Baquero tem o condão de inspirar sedução e repulsa. Maje, a vilã diabólica e manipuladora do filme lembra as grandes antagonistas das telenovelas brasileiras, sempre com uma carta extra na manga até que atinjam seus objetivos. Maje arquiteta a morte de Arturo porque estava apaixona-se por um rapaz que conhecera numa noitada, mas quem a ajuda a dar cabo de seu marido é Salvador, o Salva, um colega de trabalho com quem também mantinha um relacionamento extraconjugal. Baquero e Tristán Ulloa batem uma bola redonda até o desfecho — previsível, claro, mas muito bem-executado —; a grande deficiência aqui é o desperdício de Carmen Machi, que na pele de Eva, a investigadora do homicídio de Arturo, que rouba a cena no prólogo e some para só voltar no encerramento. Mas “O Jogo da Viúva” é, sim, mais um ponto do noir espanhol. Com alguma boa vontade, até sembra um pouco Buñuel.